quinta-feira, 10 de abril de 2008

Ferida aberta na MPB

Show Lembranças do Futuro em Guaratinguetá - 2007



Ferida aberta na MPB
Hugo Sukman



Que Chico, Caetano, Vandré, Gil e a turma dos anos 60 foram símbolos na classe artística da luta contra a ditadura até as paredes do Dops sabiam. Mas que Gutemberg Guarabira — o cabeludo inventor do rock rural ao lado de Luiz Carlos Sá e Zé Rodrix — foi o secreto protagonista de uma das aventuras mais eletrizantes dessa luta, isso foi revelado pelo recém-lançado “A era dos festivais — Uma parábola”. O livro, do musicólogo Zuza Homem de Mello, revela que o compositor da doce “Margarida” — canção romântica inspirada em cantigas de roda, vencedora do Festival Internacional da Canção de 1967 — foi o idealizador do célebre movimento que, em 1971, quase detonou o festival ao promover a inscrição de canções-fantasmas de grandes compositores (Tom, Chico, Marcos Valle, Edu Lobo, Sérgio Ricardo e outros) que na hora agá retiraram sua participação e divulgaram manifesto contra a censura.
Pois tal aventura subversiva — reforçada por ele ocupar na época o cargo de diretor artístico do festival — não foi novidade na vida de Guarabira, filho de uma família de comunistas baianos.
— Desde criança estava acostumado a esconder gente no meu quarto — diz Guarabira ao GLOBO. — Cheguei a guardar armas da ALN (Aliança Libertadora Nacional, movimento liderado por Carlos Marighela) em meu apartamento em Copacabana.
Como simpatizante ativo do grupo, revela Guarabira, ele cumpria missões como trocar o dinheiro dos roubos a banco. E fazia isso no bar da moda de Ipanema na ocasião, o mítico Zepelin. Ele entrava no bar, distribuía obas e olás para freqüentadores assíduos como Jaguar e o pessoal do “Pasquim”, e dirigia-se ao caixa. Pegava o saco de dinheiro, em notas miúdas, e entregava. Recebia de volta a mesma quantia, só que em notas maiores.
— Uma vez, enquanto eu trocava dinheiro no Zepelin, a perícia examinava a agência do lado, de onde o dinheiro saíra pouco antes — diz.
Livrar-se do dinheiro miúdo dos assaltos (ou, como se dizia, expropriações) não era nada para esse freqüentador, ao lado de Paulinho da Viola e Sidney Miller, das rodas de samba do Teatro Jovem (também núcleo comunista), em Botafogo. A grande aventura foi quando ele juntou a vida clandestina de militante de esquerda com a civil, do homem ligado à música. Foi em 1971, auge da repressão política do governo Médici. Ele era diretor artístico do FIC e arquitetou e executou um bem-sucedido plano para burlar a censura e protestar contra a ditadura no pior momento dela.
— A censura estava cortando tudo e, o que era pior, a polícia passou a exigir da direção do festival a ficha completa, carteira de identidade registrada na Censura e todos os dados dos participantes previamente enviados para Brasília para averiguações. Além disso, as imagens do festival transmitidas pela televisão estavam sendo usadas como propaganda positiva da ditadura no exterior, uma falsa imagem de nós que éramos contra o regime — diz Guarabira, justificando sua idéia arriscada.
Ao lado de Chico Buarque, a quem ele procurara sigilosamente e que logo aderiu à conspiração mesmo em pleno ensaio do show “Construção”, no Canecão, Guarabira teve que levar vida dupla: de dia batendo ponto na sede do Festival, na TV Globo, e até em reuniões com a Censura e o Dops, que pressionavam o festival e a emissora sem parar, e à noite convencendo seus colegas, secretamente, a inscrever músicas falsas no Festival — Tom e Chico mandaram “uma canção meio sombria”, “Que horas são?”, que nunca existiu.
Antes de a Censura perceber, o manifesto foi publicado no jornal “Última hora” e chegou às agências estrangeiras. Virou caso internacional. A ditadura se desmoralizou onde não esperava.
Guarabira teve que enfrentar desconfianças mesmo entre os colegas. Alguns, como Torquato Neto e Ruy Guerra, consideravam-no um “vendido” ao sistema, pois não sabiam do jogo duplo.
— A experiência me preparou para agir quieto, até ouvir ofensas sem me incomodar.
Segundo ele, valeu a pena. Já que foi publicado o manifesto dos artistas contra a ditadura, disfarçado numa carta em que se retiravam do festival: “As razões são públicas e notórias: a exorbitância, a intransigência e a drasticidade do Serviço de Censura (...), afora exigências burocráticas inconcebíveis, tais como cadastramento e carteirinha dos participantes (...). Sem esquecer sempre a desqualificação dos que exercem uma função onde a sensibilidade e o respeito pela arte popular são prioritários”.



Guarabyra pelo cartunista LAN


Compositor dá sua versão da controvertida história 30 anos depois






A bem-sucedida conspiração urdida por Guarabira também deixou suas feridas. Que ainda estão abertas. Guarabira conseguiu fugir para Brasília num jatinho do Banco do Brasil (namorava a filha de um diretor do banco estatal!). Os compositores do manifesto foram todos convocados para depor, do habituado Chico Buarque a Marcos Valle, e até o insuspeito Tom Jobim.
O problema se deu com os compositores mais jovens que, liderados, segundo o livro, por Aldir Blanc e Gonzaguinha, e também orientados por Guarabira, apoiaram os colegas mais experientes. Ainda segundo o livro, o texto de desistência dessa segunda turma chegou a ser redigido, mas “um deles, integrante do MAU e concorrente, teria ficado com medo e telefonou para o festival denunciando que seu companheiro Gonzaguinha estava passando o abaixo-assinado. Aí os militares resolveram intimar os novatos a depor também.” Em outras palavras, um concorrente, membro do Movimento Artístico Universitário, teria delatado os companheiros.
Como os outros membros do MAU concorrentes (além de Aldir e Gonzaguinha, Paulo Emílio, Marcio Proença e Silvio da Silva Jr.) assinaram, sobra César Costa Filho, parceiro de Aldir na canção “Medo”.
Quase 32 anos depois, César aceitou dar ao GLOBO pela primeira vez sua versão da história. Compositor emergente na ocasião, participou com sucesso de festivais universitários, do programa “Som Livre Exportação” e, numa bela canção com Aldir, “Ela”, batizara disco de Elis Regina.
Depois do episódio, contudo, sua carreira foi interrompida. Hoje, declara-se vítima de uma conspiração dos próprios colegas, liderados por “um colega” que “queria que todas as portas se fechassem para mim”. César, que está praticamente afastado da vida artística, trabalhando como vice-presidente da sociedade arrecadadora de direitos autorais Addaf, diz que nunca soube de qualquer manifesto.
— Fiquei sabendo que todos os classificados teriam que portar um crachá, que seria obrigatório para apresentarem suas músicas quando subissem ao palco — diz César. — Em princípio estranhei a exigência. Em outros festivais, nunca pediram nada semelhante. Caso eu concordasse, teria que assinar um documento me comprometendo a usar o crachá. Naquele momento, jamais poderia imaginar que, ao assinar tal documento, estaria servindo aos propósitos daqueles vermes. Tudo que eu mais queria era cantar minha música e não via problema em usar um simples crachá. Imaginei que deveria ser alguma decisão dos organizadores para coibir a entrada de pessoas estranhas ao evento, mesmo porque o letrista da minha música poderia ter impedido que sua letra fosse divulgada, caso assim desejasse.
O letrista da música era Aldir Blanc, signatário do manifesto, não citado nominalmente pelo ex-parceiro, mas claramente “o colega” que, segundo ele, queria prejudicá-lo.
— A culpa do fracasso dele não é minha. Ele não pode dizer isso 30 anos depois — reage Aldir, que rompeu com César assim que soube, por Guarabira, que teria sido ele a delatar os compositores que assinaram o manifesto. — O Guarabira estava na sala e disse ter visto e ouvido César pegar o telefone e passar a história toda. Perdoar esse tipo de falha de caráter é impossível.
Guarabira prefere não falar em nomes, mas confirma que houve a denúncia.
César diz nunca ter dado o telefonema. Disse que, numa noite, dois homens que se identificaram como policiais federais o levaram para o Hotel Glória, sede do festival, onde ele foi submetido a um interrogatório. O chefe teria perguntado: “Por que você, membro de um movimento político-musical, não criou nenhum impedimento quanto ao uso do crachá?”. Resposta: “Estou neste festival para cantar minha música, isto é o que eu quero. Não é a exigência do uso de um crachá que vai me desmotivar. Minha música está acima disto”. Em seguida, o policial teria perguntado a César “por que alguns compositores pensam diferente” e ele retrucou que “não sabia o que ia pela cabeça de cada um”. No que o “chefe” retrucou: “Esperávamos que você pudesse colaborar conosco sobre este assunto. No entanto, creio que estamos errados.”
César diz que foi vítima do sucesso que estava fazendo com seus colegas de MAU, Gonzaguinha e Ivan Lins. O fato é que, desde então, ele gravou seis discos, compôs para Xuxa (o “Abecedário da Xuxa”), mas o sucesso artístico nunca mais aconteceu. Gonzaguinha e Ivan seguiram carreira normal.
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Esse blog agradece a colaboração de J., que nos enviou esse artigo!

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