FORMIGAS E CIGARRAS: BYE BYE, BLUES BOY
Já falei aqui que detesto necrológios. Eles me cheiram à Academia Brasileira de Letras, que sofre com aquele monte de gente à sua porta secando nossos pobres velhinhos literatos, de olho em suas cadeiras. Mas que fazer quando se leem na imprensa aqueles artigos urubuzentos, muitas vezes prontos de antemão e porcamente pesquisados por estagiários incompetentes, escravos da Wikipédia, que ignoram o fato de que o futuro só existirá com brilho se conhecermos o passado e prestarmos atenção ao presente? Simples: justiça a quem se foi.
Assim é que hoje tenho que falar do Celsinho. Que figura! Bastou uma jam session onde o escutamos no velho Teresão, espaço ícone das jams de rock do Rio dos 70 para que eu e meu parceiro Guarabyra praticamente o raptássemos para a nossa banda de apoio, virgem de estrada aos recentemente feitos dezessete anos. Guarabyra não demorou a apelidá-lo de “Blues Boy”, dada a veneração que ele dedicava a B.B.King, apelido que a princípio ele renegou por óbvio, mas que colou de maneira a tornar-se sua marca indelével, coroada afinal pelo respeito dedicado a ele pelo próprio B.B. , num raro e admirável bate-e-volta de gerações e admirações.
Acredito que nossa banda tenha sido a primeira a forçá-lo a seguir outros caminhos que não o rock’n’roll puro que ele tocava naquele tempo. Acontece que ao básico ele somava uma misteriosa originalidade, uma linguagem toda sua, feita por dedos então ainda alheios a efeitos de pedaleira, uma coisa única, carismática, que nos conquistou à primeira vista. Mesmo sabendo que nosso “rock rural” podia não ser a praia daquele garoto aguerrido, nós fizemos questão de conquistá-lo também. E fomos pra estrada numa sucessão de shows, broncas, abraços, tombos, fracassos e sucessos, numa das fases mais turbulentas dos nossos quarenta anos de carreira. Rebelde a quaisquer combinações prévias que cheirassem a “ensaio”, Celsinho saía-se com improvisos inesperados, às vezes geniais, outras totalmente fora do contexto, que piravam nossa cabeça para o bem ou para o mal... mas naqueles breves dois anos em que estivemos juntos, tornamo-nos amigos para sempre.
Radical em suas opiniões imediatistas e baseadas em dados aleatórios juntadas por sua cabeça de menino solitário, Celsinho arrumava uma encrenca por minuto. Mas acho que essa pseudo-rebeldia era apenas um ponto de escape, mais admiravelmente exposto na sua maneira de tocar que em sua maneira de falar. Ele nada mais era que um garoto romântico e idealista, que como outros iguais escondia essa “fraqueza” atrás de uma atitude agressiva, que com o passar dos anos amenizou-se na pessoa e permaneceu em parte na sua guitarra, ao mesmo tempo forte e melódica ao extremo, dando-nos de presente uma herança instrumental inimitável no gênero. Os presentes e futuros guitarristas de blues e rock que me perdoem, mas na minha nada modesta opinião eles vão ter que dar duro pra chegar ao nível do Blues Boy. Vi Celsinho fazer coisas absolutamente extraterrestres na sua Telecaster despedalada. Nosso grande desentendimento - na época em que ele estava em nossa banda - era sua mania de correr pra frente do palco, aumentar ao máximo o volume da guitarra e fazer dez minutos de solo numa música de três e meio. “Meu bom, as estrelas somos nós”, eu berrava na orelha dele, e ele voltava a contragosto pro fundo do palco, com cara de fúria, pra depois, no camarim, me abraçar e pedir desculpas... E eu dizia então pra ele: “Cara, você não é músico de acompanhar ninguém, vai fazer tua carreira solo. Vai cantar também, fica mais fácil”. Adoro imaginar que foram nossas discussões que o empurraram para outro caminho. Mas agora vai ficar difícil saber disso com certeza.
Encontramo-nos pela última vez no festival de Três Pontas de 2010. Demos risada, lembramos nossos esotéricos anos de estrada, juntamos amigos e família em fotos inusitadas e subimos ao palco para o que eu jamais imaginaria que seria nosso derradeiro encontro musical. Tocamos juntos a “Primeira Canção da Estrada” e o “Pó da Estrada”, músicas que ele adorava desde sempre. E acho que pra reforçar a lembrança de dias passados, Celsinho recusou-se a chegar à frente na hora dos solos, tocando o tempo todo ao nosso lado, com o brilhantismo e a originalidade de sempre, reforçados agora com a maturidade de um músico temperado por trinta anos de carreira.
Meu querido Blues Boy, que saudades fiquei eu hoje de te dar um daqueles esporros pelas extrapoladas de solos, de ter o trabalho de sentar contigo no camarim e te exigir disciplina onde ela não podia existir, porque você era um incontrolável míssil dono da própria trajetória. Quem me dera poder te puxar da frente do palco e berrar na tua orelha aquelas coisas que te convenciam a voltar lá pro fundo. Quem me dera poder receber tuas desculpas no camarim.
Mas o problema é que existem formigas e cigarras. E você era uma cigarra radical: não se escondeu do inverno, não resistiu à neve, apenas se deixou levar, roçando as asas até o último suspiro.
Ou melhor, até a última nota da sua inimitável guitarra.
Fotos e Filme: Marlene Alves