terça-feira, 4 de novembro de 2008

CAÇADOR de MIM, a canção!

Amigos:
Ano que vem sai meu livro com uma compilação da série de crônicas “Na Estrada”, que fiz para a revista BackStage, uma memória de viagens de música. Agora inicio outra série para a mesma revista, “Vida de Artista”, com considerações e orientações, para os que querem iniciá-la, sobre e para uma carreira profissional de músico e artista. Espero que vcs continuem gostando. Beijos e abraços do amigo
Luiz Carlos Sá



VIDA DE ARTISTA
luiz carlos sá

Nós, compositores, cantores, músicos ou criadores de outros tipos de quem não posso falar com a devida propriedade, temos decerto um prodigioso pára-raios onde antigamente devia existir a famosa moleira. Mas esses pára-raios são diferentes: em vez de nos proteger das faíscas, elas as conduzem até nosso cérebro, onde rola, finalmente, o surto-circuito – isso mesmo, surto (não curto) circuito! - que chamamos criação. Esses tais raios nos atingem sem hora, dia ou lugar predestinados e nos deixam zonzos, imaginando se nossas mães não nos teriam mergulhado propositadamente, no lugar do batismo convencional, numa banheira de gelatina psicodélica... Chama-se a isso “inspiração”, um nome bem próprio se pensarmos que tais coisas parecem nos entrar narinas adentro, como aquele determinado cheiro que faz com que nos lembremos de atos e fatos que julgávamos esquecidos.
O problema é que depois da inspiração tem que vir a transpiração. Nela nossa cabeça trabalha fisicamente, como um atleta, esforçando-se por atingir a perfeição da criatividade, costurando o improvável, remendando o disperso e tendo que coordenar da maneira mais organizada possível aquilo que se passa na nossa pobre imaginação limitadamente humana.
Foi pensando nisso que resolvi mudar o rumo dessa minha coluna, que até agora se dispunha a contar os acontecimentos de trinta e tantos anos de viagens e shows Brasil e mundo afora, para refletir sobre o que nos leva a viver de uma determinada maneira que se convencionou chamar de “vida de artista”. Porque não escolhemos uma vida mais “tranqüila” e “segura”, como a maioria de nossos pais (tenho certeza dessa maioria...) quis nos induzir a viver? Porque o artista passa tantas vezes por essas desnecessárias angústias, por esses atalhos incongruentes, por essas dúvidas injustificadas? A resposta é simples: só nós temos que ser ao mesmo tempo cigarras e formigas. Cigarras pelo prazer de exercer a arte, formigas pelo dever de encarar os prosaicos, mas essenciais, problemas do dia a dia: comer, morar, ter família... Ainda assim nosso papel social é muitas vezes visto com um injustificado ceticismo por aqueles que acham supérfluo o exercício da Arte, mesmo que esse tipo de pensamento seja insustentável diante do simples conhecimento da História do Mundo.
Por isso, deste mês em diante, vocês lerão aqui o “Vida de Artista”, onde pretendo refletir sobre as várias correntes do grande rio que nos leva a optar por esse jeito diferente de viver.
Se é que é diferente...


luiz carlos sá












EU, CAÇADOR DE MIM

Pense em São Paulo ,1979. Eu estava ali sentado na sala que ocupava em meu estúdio, o Vice Versa, pensando no que fazer naquela tarde desanimada de verão paulistano. De repente, toca o telefone:
- Alô?...
- E aí, Sá, é Magrão...
Meu amigo Sérgio Magrão , baixista do então quase-recém-formado 14Bis.
- Fala, Magreza! – brinquei.
- Estou aqui com uma música pra te mostrar. Queria que você fizesse a letra.
Sérgio Magrão foi o primeiro baixista de estrada de Sá, Rodrix & Guarabyra. Começara conosco em 72 e nos acompanhara na mudança do Rio para S.Paulo quando fomos chamados por Rogério Duprat para integrar a equipe de criação da Pauta Produções e depois associar-nos ao Vice Versa, estúdio de gravação e publicidade que criamos com Duprat e mais dois sócios em 74. Na primeira leva paulistana, eu, Rodrix e Guarabyra carregamos conosco Magrão no baixo e Luís Moreno na bateria. Depois da saída de Rodrix, eu e Guarabyra trouxemos Sérgio Hinds na guitarra e Cezar de Mercês nos vocais e na percussão, completando depois a banda – que gravaria conosco o primeiro disco da dupla, o “Nunca” - com um jovem tecladista mineiro indicado por Milton Nascimento, Flávio Venturini. Depois, essa banda backing virou a segunda formação do Terço e desembocou no 14Bis . Mas o que eu ainda desconhecia era o fato de que Magrão também compunha. Fiquei surpreso:
- Ué! Você tá compondo agora?
Magrão ficou meio espantado com a minha reação:
- E porque não?
- É bom saber!
E eu devia mesmo ter desconfiado antes do talento compositor de Magrão. Porque você pode perceber pela melódica do instrumentista quando ele também pode compor. É só começar...
- Dá pra você passar aqui agora?
- Estou indo.

Sá & Guarabyra e O Terço ( foto site Luiz Moreno- agradecimentos à Irinéia)
E lá veio ele. Em menos de uma hora estávamos juntos na minha sala. Magro pegou o violão e começou a desfiar uma melodia suave, simples, mas muito bem engendrada. Fiquei encantado com a força e a beleza contidas nela, à espera apenas das palavras certas. Depois que Magrão saiu fiquei ouvindo no meu micro-cassette – então ainda uma novidade! – a melodia que ele me deixara. Uma coisa qualquer, uma “inspiração”, fez com que eu remexesse minha bagunçadíssima primeira-gaveta-à-direita atrás daquela letra que eu fizera meses atrás depois de reler pela terceira vez o “Apanhador no Campo de Centeio” de J.D.Salinger:

Por tanto amor, por tanta emoção
A vida me fez assim
Doce ou atroz, manso ou feroz, eu, caçador de mim...

A letra era o retrato de minha vida à época, quando eu reavaliava minhas opções como artista e como pessoa. A necessidade de entrar de cabeça no mundo dos jingles, para podermos pagar o estúdio, me enchera de dúvidas. Quem eu era de verdade, o que eu queria, onde eu gostaria de chegar, todas aquelas perguntas sem resposta que nos acometem mais tarde ou mais cedo ficavam ecoando na minha cabeça confusa, em plena crise dos trinta ou como quer que vocês queiram chamar essa encruzilhada esquisita onde chegamos às vésperas da meia-idade. Para meu completo espanto a letra foi aos poucos se encaixando magicamente na melodia do Magrão, sem que eu tivesse que mexer um dedo na métrica:


Preso a canções, entregue a paixões que nunca tiveram fim
Vou me encontrar longe do meu lugar, eu, caçador de mim...



Para que seja bem entendido o inusitado da situação, explico aos não-compositores que um acontecimento desses – um acerto de letra e melodia sem conhecimento anterior - beira o mediúnico, como se eu e Magrão tivéssemos experimentado inconscientemente algum tipo de telepatia...
Mas a moleza acabou na segunda parte, e aí veio a fase da “transpiração”. A letra na gaveta parava ali, divisão se reduzia e eu tive que conter meu entusiasmo e fazer do menos, mais. Afinal consegui resumir o que eu acreditava ter que fazer num futuro próximo:



Nada a temer senão o correr da luta
Nada a fazer senão esquecer o medo
Abrir o peito à força numa procura
Fugir das armadilhas na mata escura...



Como fechar? Eu sentia que tinha que contrapor a dúvida à certeza, para expressar direito o que estava se passando comigo. Levei mais uns três dias obcecado pelo que faltava, até terminar:



Longe se vai, sonhando demais
Mas onde se chega assim
Vou descobrir o que me faz sentir
Eu, caçador de mim



No dia seguinte chamei Magrão de volta ao estúdio e ficamos horas tocando a música completa, maravilhados pelo bom resultado. Dias depois tivemos uma reunião com o resto do pessoal do 14Bis em minha casa. Vermelho, o tecladista, egresso do grupo Bendengó e também nosso amigo de longo tempo, questionou o título da música:
-“Caçador de Mim”? De onde saiu isso?
Entendi a estranheza e expliquei longamente a relação entre a letra e a temática do “Apanhador...” de J.D.Salinger. Vermelho, pragmático total, achava aquilo tudo longe do cidadão comum e do dia-a-dia. Mas eu confiava, e até hoje confio, na intuição artística como uma arma superior a qualquer teoria. Algo me dizia que aquela música seria um marco na minha vida e talvez na de muitas outras pessoas também:
-Vai por mim. Todo mundo vai entender o que isso quer dizer.
Convencido o Vermelho e o resto do grupo, o 14Bis gravou a música. Não muito tempo depois, Magrão levou a gravação a Milton Nascimento. Milton fez questão de esconder de mim até o último minuto, para fazer surpresa, que tinha não só gravado o “Caçador” como também intitulado seu novo disco com o nome de nossa música:
-É minha – dizia ele, e diz até hoje.
Depois de quase trinta anos cantando o “Caçador” em shows, sinto até hoje a mesma emoção que senti junto com Magrão na minha sala da Vice Versa naquele longínquo 1979. Quando depois dos shows, no camarim, as pessoas vêm me dizer que essa música parece ter sido feita para elas numa determinada época de suas vidas me convenço ainda mais de que quando fazemos as coisas com a força da inspiração e da transpiração o tempo parece não passar: pára por ali mesmo e faz com que pensemos nos Salinger, nos Rimbaud, nos Kerouac, nos Rilke, nos Dylan e em todos aqueles – artistas ou não - que renunciaram romanticamente a uma vida normal para provar... O que mesmo? Não importa. Para simplesmente provar. Ou para pôr-se à prova.

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